Muito recentemente foram revelados dados sobre a situação da sida em Portugal, que, como tem sido discutido, têm contornos muito negativos e preocupantes, sobretudo se forem olhados na comparação com outros países da União Europeia (UE). Segundo o que foi publicado pelo Público, existirão cerca de nove mil doentes, sendo a probabilidade do número de infectados atingir um valor tão alto como 30 mil a 40 mil. Vale desde já a pena lembrar que muitos desses eventuais infectados não terão a mínima ideia que, de facto, podem ser portadores do vírus. À situação geral, acresce o facto triste de Portugal ser o único país da UE que mantém ainda taxas de aumento da doença, essencialmente à custa da população heterossexual e toxicodependente. Mesmo se olharmos para toda a Europa, só a Ucrânia consegue pior. É impressionante.
Depois, lemos também que é urgente fazer campanhas de sensibilização da população jovem, que é facilmente a de maior vulnerabilidade; em franco período activo da sua vida sexual, é compreensível que se queira incidir sobre os rapazes e raparigas adolescentes. É sobre esse assunto que vale então a pena pensar sobre algumas questões importantes.
De facto, desde que nos longínquos anos 80 se começou a falar da doença, que a sua distribuição se modificou de forma extremamente importante. Inicialmente ligada aos grupos de adultos homossexuais com uma vida promíscua, os doentes com sida eram alvo de uma discriminação social muito forte. Mas, de verdade, os anos foram trazendo mudanças sobre o espectro de incidência da sida e, a pouco e pouco, a doença foi homogeneamente dizendo respeito a todos os grupos de pessoas, independentemente da sua orientação sexual predominante, ao mesmo tempo que se ia igualmente instalando no grupo dos consumidores de drogas com ingestão endovenosa, a partir da partilha de seringas. Para o bem e para o mal, a sida passou a dizer respeito a todo e qualquer cidadão, independentemente do seu papel, estatuto ou orientação sexual; de grupos de risco passou-se então a falar de comportamentos de risco.
Hoje, anos depois, após muito investimento global de comissões governamentais e do trabalho de organizações não governamentais de que é impossível não destacar a Abraço, o panorama mudou. Perante um país de tradições culturais pobres, com uma vivência da sexualidade muito fechada em nós cegos de uma rigidez social e cultural muito espessa, podemos dizer que a aceitação da doença é completamente diferente, que o conhecimento sobre as suas formas de disseminação é mais intenso. Acresce ainda que, felizmente, as hipóteses de intervenção médica sobre a doença melhoraram espectacularmente e, de uma forma geral, a sida já não é mais considerada uma doença fatal, mas uma doença de evolução crónica.
O que se passa então que explique este estado de desgraça e, por isso, de enorme risco em termos de saúde pública, em que todos nos encontramos? Provavelmente, muitos factores, mas é possível que a prática de intervenção em saúde mental infantil e juvenil ajude a esclarecer alguma coisa.
A primeira questão é que qualquer comportamento resulta sempre de determinado funcionamento mental, isto é, depende das coisas que consciente ou inconscientemente se sentem ou pensam. No caso, os comportamentos sexuais, quer sejam de risco ou não, têm obviamente a ver com a organização emocional da sexualidade, que, como é sabido, se inicia muito antes da adolescência. Já é preciso recuar muito no tempo para não se aceitar que existe uma organização da sexualidade desde a infância, embora de forma diferente da vivência genital adolescente e adulta. E para essa organização ocorrer de forma saudável é pelo menos necessário que exista um investimento afectivo de ambos os pais na criança, ou seja, que a criança seja seu objecto de amor incondicional, que os pais funcionem como modelo de relação de casal, e que se ofereçam como modelos de identificação feminina e masculina para os seus filhos. Parece extraordinariamente simples, mas são comuns os casos em que pelo menos uma destas premissas não se cumpre de forma eficaz; se a isso juntarmos uma série de condicionantes socioculturais que, cada vez mais, dão aos mais novos informação e experiências de conteúdo sexual distorcido, então podemos compreender como aumentaram os riscos para determinados comportamentos sexuais disfuncionais.
Sendo assim, o que hoje encontramos é um número crescente de adolescentes que vive a sua sexualidade de forma desintegrada das respectivas vivências afectivas. De uma forma muito simples, pratica sexo sem conhecer o amor. E, imensas vezes, fá-lo projectando modelos completamente distorcidos, em que abundam as expectativas irreais de um desempenho de sensação major com uma envolvência e investimento afectivo minor. Não vale a pena ir muito longe: basta escutar o que muitas raparigas esperam delas próprias e de um rapaz no decorrer de uma relação. Mas o caso piora bastante, ou pelo menos ainda é mais visível, no que toca aos rapazes: a modelação por referências externas (sobretudo de grupo) de uma cultura "macho" induz a estados de funcionamento psíquico onde a desvalorização do próprio é notória, embora se exteriorize sistematicamente pelo oposto. A experiência da nossa área demonstra como é tantas vezes necessário ajudá-los a fazer uma leitura dessas fantasias e a elaborá-las de uma forma mais tranquila e harmónica.
Ora, o grande desafio para prevenir estes comportamentos, que é simultaneamente a maior dificuldade, é atingir o coração destes miúdos, e sempre que se falar de sexo, falar-se de amor. Claro que tudo isso é muito mais complicado, bate mais fundo e, sobretudo, mexe connosco, com a nossa própria vivência adulta, com a experiência adolescente e infantil de cada um de nós. Mexe com as emoções e não apenas com as sensações, mexe com os afectos, com os sentimentos e, por último, com os pensamentos e a forma como os articulamos e desenvolvemos na relação com os outros.
Aliás, é muito engraçado verificar como a conversa toca e flui, quando se tem oportunidade de falar destes assuntos com rapazes e raparigas adolescentes. Só que tudo isso implica muito mais do que lhes andamos a dar: implica uma mudança de atitude que permita que, em vez de números, se fale de pessoas e com pessoas, que, em vez de se modificarem comportamentos, se compreenda o que os origina interiormente, e que, em vez de se ler a sexualidade a partir de um modelo fisiológico, que o façam baseando-se na sua vivência emocional.
No fundo, o que é preciso fazer é ajudar os mais novos a ter uma vivência da sexualidade mais gratificante, quer dizer, mais serena, mais confiante, mais amada, para que vivê-la não seja assumir um desnecessário risco de vida. Para que, afinal, o dia-a-dia não tenha tantos conflitos com a morte, justamente em idades em que se deveria experimentar o amor.
Pedro Strecht
Depois, lemos também que é urgente fazer campanhas de sensibilização da população jovem, que é facilmente a de maior vulnerabilidade; em franco período activo da sua vida sexual, é compreensível que se queira incidir sobre os rapazes e raparigas adolescentes. É sobre esse assunto que vale então a pena pensar sobre algumas questões importantes.
De facto, desde que nos longínquos anos 80 se começou a falar da doença, que a sua distribuição se modificou de forma extremamente importante. Inicialmente ligada aos grupos de adultos homossexuais com uma vida promíscua, os doentes com sida eram alvo de uma discriminação social muito forte. Mas, de verdade, os anos foram trazendo mudanças sobre o espectro de incidência da sida e, a pouco e pouco, a doença foi homogeneamente dizendo respeito a todos os grupos de pessoas, independentemente da sua orientação sexual predominante, ao mesmo tempo que se ia igualmente instalando no grupo dos consumidores de drogas com ingestão endovenosa, a partir da partilha de seringas. Para o bem e para o mal, a sida passou a dizer respeito a todo e qualquer cidadão, independentemente do seu papel, estatuto ou orientação sexual; de grupos de risco passou-se então a falar de comportamentos de risco.
Hoje, anos depois, após muito investimento global de comissões governamentais e do trabalho de organizações não governamentais de que é impossível não destacar a Abraço, o panorama mudou. Perante um país de tradições culturais pobres, com uma vivência da sexualidade muito fechada em nós cegos de uma rigidez social e cultural muito espessa, podemos dizer que a aceitação da doença é completamente diferente, que o conhecimento sobre as suas formas de disseminação é mais intenso. Acresce ainda que, felizmente, as hipóteses de intervenção médica sobre a doença melhoraram espectacularmente e, de uma forma geral, a sida já não é mais considerada uma doença fatal, mas uma doença de evolução crónica.
O que se passa então que explique este estado de desgraça e, por isso, de enorme risco em termos de saúde pública, em que todos nos encontramos? Provavelmente, muitos factores, mas é possível que a prática de intervenção em saúde mental infantil e juvenil ajude a esclarecer alguma coisa.
A primeira questão é que qualquer comportamento resulta sempre de determinado funcionamento mental, isto é, depende das coisas que consciente ou inconscientemente se sentem ou pensam. No caso, os comportamentos sexuais, quer sejam de risco ou não, têm obviamente a ver com a organização emocional da sexualidade, que, como é sabido, se inicia muito antes da adolescência. Já é preciso recuar muito no tempo para não se aceitar que existe uma organização da sexualidade desde a infância, embora de forma diferente da vivência genital adolescente e adulta. E para essa organização ocorrer de forma saudável é pelo menos necessário que exista um investimento afectivo de ambos os pais na criança, ou seja, que a criança seja seu objecto de amor incondicional, que os pais funcionem como modelo de relação de casal, e que se ofereçam como modelos de identificação feminina e masculina para os seus filhos. Parece extraordinariamente simples, mas são comuns os casos em que pelo menos uma destas premissas não se cumpre de forma eficaz; se a isso juntarmos uma série de condicionantes socioculturais que, cada vez mais, dão aos mais novos informação e experiências de conteúdo sexual distorcido, então podemos compreender como aumentaram os riscos para determinados comportamentos sexuais disfuncionais.
Sendo assim, o que hoje encontramos é um número crescente de adolescentes que vive a sua sexualidade de forma desintegrada das respectivas vivências afectivas. De uma forma muito simples, pratica sexo sem conhecer o amor. E, imensas vezes, fá-lo projectando modelos completamente distorcidos, em que abundam as expectativas irreais de um desempenho de sensação major com uma envolvência e investimento afectivo minor. Não vale a pena ir muito longe: basta escutar o que muitas raparigas esperam delas próprias e de um rapaz no decorrer de uma relação. Mas o caso piora bastante, ou pelo menos ainda é mais visível, no que toca aos rapazes: a modelação por referências externas (sobretudo de grupo) de uma cultura "macho" induz a estados de funcionamento psíquico onde a desvalorização do próprio é notória, embora se exteriorize sistematicamente pelo oposto. A experiência da nossa área demonstra como é tantas vezes necessário ajudá-los a fazer uma leitura dessas fantasias e a elaborá-las de uma forma mais tranquila e harmónica.
Ora, o grande desafio para prevenir estes comportamentos, que é simultaneamente a maior dificuldade, é atingir o coração destes miúdos, e sempre que se falar de sexo, falar-se de amor. Claro que tudo isso é muito mais complicado, bate mais fundo e, sobretudo, mexe connosco, com a nossa própria vivência adulta, com a experiência adolescente e infantil de cada um de nós. Mexe com as emoções e não apenas com as sensações, mexe com os afectos, com os sentimentos e, por último, com os pensamentos e a forma como os articulamos e desenvolvemos na relação com os outros.
Aliás, é muito engraçado verificar como a conversa toca e flui, quando se tem oportunidade de falar destes assuntos com rapazes e raparigas adolescentes. Só que tudo isso implica muito mais do que lhes andamos a dar: implica uma mudança de atitude que permita que, em vez de números, se fale de pessoas e com pessoas, que, em vez de se modificarem comportamentos, se compreenda o que os origina interiormente, e que, em vez de se ler a sexualidade a partir de um modelo fisiológico, que o façam baseando-se na sua vivência emocional.
No fundo, o que é preciso fazer é ajudar os mais novos a ter uma vivência da sexualidade mais gratificante, quer dizer, mais serena, mais confiante, mais amada, para que vivê-la não seja assumir um desnecessário risco de vida. Para que, afinal, o dia-a-dia não tenha tantos conflitos com a morte, justamente em idades em que se deveria experimentar o amor.
Pedro Strecht
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