Em algumas ocasiões parece haver certa vontade social de envolver a psiquiatria na questão da mentira, notadamente quando alguma pessoa mente descaradamente, ou compulsivamente, e principalmente, quando a sua atitude mentirosa causa frustrações ou aborrecimentos noutros que não “merecem” tais mentiras.
A psiquiatria não se baseia na análise isolada das atitudes. Para a psiquiatria importa o conjunto da situação existencial na qual se insere a pessoa, os sentimentos, pensamentos e propósitos que acompanham as atitudes.
Desta forma, por si só, a mentira não é suficiente para pensar em diagnósticos.
Pesquisas mostram que todos mentem de uma forma ou de outra, e assim sendo, a dificuldade da psiquiatria está em descobrir qual é a mentira patológica e qual é a mentira, por assim dizer, fisiológica.
Existe ainda a mentira institucional, aquela dos políticos, dos programas de governo, de instituições. São mentiras já mais ou menos aguardadas e socialmente sabidas como mentiras e mesmo assim com peso de verdade.
Pelas curiosidades em torno deste assunto, talvez seja importante falar um pouco sobre a mentira em si, como fenômeno de falseamento da verdade, de oposição à veracidade, como mecanismo de conveniência e convivência social, de estratégia de sucesso, como planeamento político, enfim, como habilidades de sobrevivência do ser humano, e parece não ser monopólio do ser humano.
A mentira não deve ser entendida como uma espécie de contrário da verdade.
Ética e moralmente a mentira está muito mais relacionada à intenção de enganar do que ao teor da deturpação da verdade, e juridicamente, a mentira está relacionada ao dolo ou prejuízo que causa a outra pessoa.
A mentira não é apenas uma invenção deliberada, uma ficção, pois nem toda a ficção ou fábula é sinônimo de mentira. Não pode ser mentira a literatura, a arte ou mesmo a demência.
A intencionalidade é que define a mentira, estabelece o dano ou dolo.
Assim sendo, não mente quem acredita naquilo que diz, mesmo que isto seja falso.
Santo Agostinho declara que “Quem enuncia um facto que lhe parece digno de crença ou acerca do qual forma opinião de que é verdadeiro, não mente, mesmo que o facto seja falso”. Considerarmos todas as formas de mentira, desde a mentira convencional de dizer Bom Dia às pessoas sem que, necessariamente, ansiamos para que ela tenha realmente um bom dia, passando pela mentira humanitária de consolar o moribundo, pela mentira carinhosa de achar que aquele vestido fica muito bem na pessoa amada, ou a mentira por omissão, seja ela médica, política ou policial, enfim, todas essas maneiras de dissimular a verdade.
Mas, é o propósito com que falamos alguma coisa que definirá a mentira.
Mentir seria dirigir a outro um enunciado falso, cujo mentiroso sabe conscientemente dessa falsidade, e o faz com objetivo de enganar, de levar esse outro a crer naquilo que é dito, dando a entender que diz a verdade.
Como disse, para mentir o que conta é a intenção, e voltando a Santo Agostinho, “não há mentira, apesar do que se diz, sem intenção, desejo ou vontade de enganar”.
É a intenção que define se o que foi dito, verdadeiro ou falso, teve ou não o propósito de enganar. Aliás, excluindo-se o aspecto intencional de enganar que caracteriza a mentira, é mesmo muito difícil argumentar se uma verdade é mais ou menos verdadeira, de forma a aceitarmos com facilidade a expressão “a verdade de cada um”.
Muitas vezes levadas pela insegurança de ser aceitas tal como são, as pessoas podem cair na tentação de enriquecer as suas histórias e enaltecer as suas habilidades de forma a causar uma impressão mais favorável nas outras pessoas. Além de atender directamente as aspirações próprias, a mentira satisfaz também interesses de maneira indireta. É o caso, por exemplo, dos falsos rumores que diminuem, comprometem pessoas, que de uma forma ou doutra, nos ameaçam, às vezes ameaçam apenas o nosso bem estar emocional.
Mentir é um recurso fácil de se recorrer, sem necessidade de se passar por esforços ou penúrias, ainda que haja o permanente risco de ser descoberto.
Aprendemos desde cedo as vantagens da mentira.
Ainda crianças aprendemos a dizer que a mãe não está em casa, quando ela quer evitar atender o telefone. Cedo aprendemos os benefícios de um atestado médico forjado para comodidade de poder faltar às aulas, e assim por diante. Ah! Não esquecendo das mentiras a que se obrigam os netos, quando os avós perguntam de quais avós gostam mais... Mas o mentiroso também passa por dificuldades, e quanto mais cai na tentação de mentir, tanto mais difícil vai ficado controlar a abundante base de dados das versões das suas mentiras, mais difícil vai ficando garantir a coerência das suas histórias, mais necessidade de novas mentiras para encobrir as antigas.... a farsa cresce em progressão geométrica.
Não é possível para a psiquiatria estabelecer o estereótipo do mentiroso, porque cada caso é um caso.
A maioria das pessoas encaixa-senos mentirosos fisiológicos, e a mais fisiológica das mentiras são os falsos elogios. Esses mentirosos fisiológicos servem-se das mentiras também para a elaboração das mais esfarrapadas desculpas . E o interessante é que o outro, igualmente mentiroso fisiológico, também mente, fingindo acreditar. Diante dessa frequência fisiologicamente humana, existe naturalmente, uma tendência em banalizar a mentira, ou inocentemente classificar a nossa mentirazinha quotidiana como sendo do tipo positiva, aquela que além de não prejudicar pode até ajudar pessoas, ou a mentira negativa, aquela que prejudica. Enfim, a mentira fisiológica pode até facilitar a integração social, e de tal forma que as pessoas com inata dificuldade para essas mentirinhas corriqueiras são tidas como ingênuas, socialmente pouco habilidosas, falta-lhes jeito, ou como se diz espertamente, não têm “jogo de cintura”. Uma das razões interiores mais comuns para mentir é a insegurança ou uma baixa auto-estima.
Como disse, a mentira passa ao outro uma imagem de nós próprios muito melhor do que de facto acreditamos ser. Mente-se também por razões externas, de acordo com as pressões para o sucesso na vida em sociedade, por razões políticas ou até económicas, quando o prejudicado for o fisco. Finalmente existem mentiras por razões patológicas, desde aquelas determinadas por uma personalidade problemática, até as outras, produzidas por neuroses. Mentirosos contumazes, de dinâmica psíquica rica em conflitos e complexos, que representam personagens tal como fazem os actores, e refletem aquilo que gostariam de ser. Ao perderem o controle sobre o impulso de mentir o personagem criado supera o ego e a personalidade toda é tomada por um falso e grandioso ego. Menosprezando a realidade óbvia, nem todas as vezes que a realidade é falseada, distorcida, recriada ou substituída se constituirá numa mentira. Na demência, por exemplo, a cognição é de tal forma comprometida que a pessoa relata aos outros um mundo profundamente modificado e no qual acredita, sem a intenção de ludibriar. O mesmo acontece no Delírio, seja do Psicótico Esquizofrênico, do Delirante crônico ou do Deprimido grave com sintomas psicóticos. Aliás, desde crianças aprendemos a abstrair a realidade através dos devaneios, fantasias, fábulas. A própria literatura pode-nos conduzir a um mundo apaixonante “de mentirazinha”. E como a concepção da mentira se embasa na intencionalidade, esta pode ser singela e acanhada, como é o caso de uma mentira tosca da pessoa que namora, mas afirma o contrário, com o propósito de facilitar uma conquista amorosa, até uma mentira de proporções inimagináveis, como por exemplo, o falso relatório sobre a existência de um arsenal de armas de destruição em massa no Iraque, como justificação para uma guerra igualmente de destruição em massa. Há a mentira institucional, quando a propaganda mal intencionada tenta convencer de que toda a corrupção governamental será devidamente apurada e penalizada.
O hábito enraizado de mentir fantasticamente pode reflectir uma compulsão de fantasiar uma vida fictícia para causar grande mobilização e perplexidade noutras pessoas, e esta inclinação compulsiva para a mentira reflecte uma grande vontade em ser admirado, de ser digno de amor e consideração pelos demais, reflectindo uma grande insatisfação com a realidade e medíocre condição existencial.
O quadro mais grave onde a mentira aparece como sintoma importante é o Transtorno Anti-Social da Personalidade, ou Personalidade Psicopática. Embora qualquer pessoa possa mentir, temos de distinguir a mentira banal da mentira psicopática. O psicopata utiliza a mentira como uma ferramenta de trabalho. Normalmente está tão treinado e habilitado a mentir que é difícil captar quando mente. Ele mente olhando nos olhos e com uma atitude completamente neutra e relaxada. O psicopata não mente circunstancialmente ou esporadicamente para conseguir safar-se de alguma situação. Ele sabe que está mentindo, não se importa, não tem vergonha ou arrependimento, muitas vezes mente sem nenhuma justificativa ou motivo. Normalmente o psicopata diz o que convém e o que se espera para aquela circunstância. Ele pode mentir com a palavra ou com o corpo, quando simula e teatraliza situações vantajosas para ele, podendo fazer-se arrependido, ofendido, magoado, simulando tentativas de suicídio, etc. A personalidade do psicopata é narcisística, quer ser admirado, quer ser o mais rico, mais bonito, e mais bem vestido. Assim, ele tenta adaptar a realidade à sua imaginação, à seu personagem do momento, de acordo com a circunstância e a sua personalidade é narcisística. Esta pessoa pode converter-se na personagem que a sua imaginação cria como adequada para actuar no meio com sucesso, propondo a todos a sensação de que estão, de facto, em frente a uma personagem verdadeiro.
É triste quando as pessoas mentem, e depois vão a correr pedir desculpas, não por iniciativa pessoal, mas porque são induzidas a isso.
Como diz o ditado popular "A mentira tem pernas curtas".
2 comentários:
João,
Parabéns por este teu blogue. Comecei a acompanhar agora, mas já me tornei admirador indefectível. E, ademais, se já te considerava um bom amigo, agora mais convicto estou de que estou na presença de alguém com conhecimento, sensibilidade e com um sóbrio sentido crítico da realidade.
Bom trabalho.
João, o facto de ter escrito estas palavras nos comentários ao teu texto “Mentira”, não denuncia defeito de verdade, da minha parte. A não ser por pecar por insuficiente nos meus francos elogios. É tão-somente por ser o mais recente.
Estou agora a discorrer e a ler com olhos de ver tudo aquilo que, em boa hora, decidiste partilhar com todos nós.
Um abraço,
António
Caro António, Estimado AMIGO:
Fico lisonjeado com o teu comentário.
A 1ª impressão é a que fica, e a que eu vi, foi a de que és um excelente camarada e AMIGO. És uma pessoa dotada de sentimentos inabaláveis, uma postura profícua de louvar e admirar, valores que eu defendo, enfim, um ser humano digno, e digo isto porque os teus olhos revelam toda a tua sensibilidade e maneira de ser e estar na vida.
Sou uma pessoa simples, humilde, que quer deixar neste mundo uma mensagem de esperança, e um código de conduta e valores para serem seguidos e aproveitados por quem quiser e se rever neles.
António, o mais da vida que temos e vivemos não é acumular muitos anos de vida, mas adquirir sabedoria em todos os momentos que os anos nos oferecem, porque envelhecer é obrigatório, amadurecer é opcional.
GRATO POR PARTILHARES COMIGO ALGUNS DOS TEUS MINUTOS DE VIDA.
BEM HAJAS E QUE DEUS TE PROTEJA E TE DÊ TUDO AQUILO QUE DESEJAS, ANSEJAS E QUERES, NA COMPANHIA DA TUA FAMÍLIA.
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