Não faço versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a minha pessoa.
Diante dela, a vida é um sol estático,
que me aquece e me ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faço poesia com o corpo,
este meu excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.
Não canto à vida, porque a deixo em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.
A música não é a natureza,
nem os homens em sociedade.
Para ela, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A vida conjuga sujeito e objecto.
Não dramatizo, não invoco,
não indago nem perco tempo em mentir.
Não me aborreço.
Penetro surdamente no reino das palavras.
Lá estarão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intacta.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convivo com os meus poemas, antes de escrevê-los.
Tenho paciência se ainda estão obscuros.
Tenho calma se me provocam.
Pois espera que cada um se realize e consuma,
com o meu poder da palavra,
e o meu poder de silêncio.
Chegando mais perto, contemplo as inúmeras palavras.
Pois cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra.